Revisão da directiva 2003/88/CE do parlamento

13/03/2020

«A jornada de trabalho não é uma grandeza constante. Uma das suas partes é determinada pelo tempo necessário para a reprodução da força de trabalho mas o seu tamanho global varia de acordo com a duração do sobre-trabalho. A jornada de trabalho é desta forma variável. O capitalista mantém os seus direitos como um comprador quando ele tenta estender este dia o maior tempo possível (…), por outro lado, o trabalhador mantém o seu direito, como vendedor,quando quer limitar a jornada de trabalho. Entre estes dois direitos iguais quem decide? A força. É por isso que a regulamentação da jornada de trabalho apresenta-se na história da produção como uma luta secular para os limites da jornada de trabalho».
(Karl Marx, O Capital, Livro 1, Volume I)

PARECER

Revisão da Directiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Novembro de 2003, relativa a determinados aspectos da organização do tempo de trabalho

A chamada Directiva do Tempo de Trabalho (Directiva 2003/88/CE) tem vindo a ser objecto de sucessivas propostas de alteração por parte da Comissão Europeia, sempre no sentido de aumentar os horários de trabalho e o tempo de submissão dos trabalhadores às entidades patronais.

De facto, desde a revolução industrial que a duração da jornada de trabalho está no cerne da luta de classes. Com avanços e recuos em função da correlação de forças existente, foi a luta organizada dos trabalhadores ao longo de todo o século XIX e XX que permitiu a redução da jornada de trabalho sem diminuição de salários. Os anos 80 e 90 marcam um culminar desta luta com a imposição em muitos países e sectores da semana das 35 horas. Em França a redução para as 35 horas semanais, iniciada em 1982 e finalizada em 1997, leva à criação só naquele país de cerca de 500 mil postos de trabalho.

É neste cenário que deve ser analisada a evolução da política da União Europeia relativamente a esta matéria. Confirmando-se como ponta-de-lança ao serviço do capital, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu aprovam em 1993 a primeira Directiva, procurando, através de um denominador comum, nivelar por baixo as normas relativas ao tempo de trabalho.

Desta forma, a flexibilidade laboral é introduzida com a consagração das 48 horas como limite máximo num período de referência de quatro meses. A directiva é revista em 2003 com o objectivo de «clarificar» conceitos. Um destes prende-se com o trabalho nocturno que apenas é considerado como tal entre as 24 e as 5 horas da manhã, muito abaixo como é sabido de muitas legislações nacionais. Ainda assim qualquer país pode optar pelo «opt-out» e ultrapassar este limite como o fará o Reino Unido onde a semana de trabalho pode ir às 80 horas sem pagamento de horas extraordinárias.

Mais tarde, o Conselho e a Comissão Europeia voltam à carga, tentando consagrar em letra de lei uma interpretação judicial que pretende excluir os períodos inactivos do tempo de trabalho. Não contente com isto pretende igualmente alargar para um ano o período de referência e rever a cláusula de «opt-out», impondo um limite de 65 horas desde que haja «acordo» do trabalhador.Felizmente estava-se em vésperas de eleições e a proposta de revisão da directiva foi chumbada no Parlamento Europeu em 2008, sob o aplauso de milhares de trabalhadores em luta.Em Março de 2010, a Comissão Europeia decidiu iniciar mais um período de consulta aos parceiros sociais com vista à completa revisão da directiva sobre o tempo de trabalho. Voltam a estar em cima da mesa o período de referência, o período inactivo e a necessidade de flexibilizar ainda mais os horários de trabalho.

A duração e, sobretudo, a organização do tempo de trabalho assumem extrema importância em contextos de crise económica, com o apelo empresarial a fórmulas de regulação flexível que potenciam a produtividade e a competitividade das empresas em prejuízo do «tempo livre» dos trabalhadores, ou seja, com amplas repercussões negativas no tempo de que estes dispõem para descansar, para dedicarem à respectiva vida familiar ou a outras actividades1.

O regime da duração e organização do tempo de trabalho tem sofrido significativas alterações,sempre num sentido de aumentar a disponibilidade laboral do trabalhador e a flexibilização permitida ao empregador, desde a respectiva regulação no DL n.º 409/71, de 27-09 (Lei da Duração do Trabalho – LDT), e no DL n.º 421/83, de 2-12 (Lei do Trabalho Suplementar – LTS),através da sucessiva legislação avulsa (v. g., Lei n.º 103/99, de 26-07) e, em momento ulterior,mediante a respectiva regulação no Código do Trabalho (CT) de 2003 e, agora, no de 2009, na sequência, aliás, da flexisegurança defendida no âmbito comunitário.

Não obstante, a redução progressiva do horário de trabalho sem perda de salário e um maior envolvimento dos trabalhadores na organização do tempo de trabalho é uma condição necessária à valorização humana dos trabalhadores.

Em Portugal, a luta dos trabalhadores, com um passado muito rico, pôs fim a horários desumanos num percurso histórico a que a Revolução de Abril deu um forte impulso. A redução das 44 para as 40 horas por semana (Lei nº 21/96 de 13 de Julho), e a conquista histórica das 35 horas por semana, 7 horas diárias na Administração Pública, são enormes conquistas dos trabalhadores com as quais o grande capital nunca se conformou e sempre procurou reverter.

 
Evidenciando os seus compromissos com o capital e a sua natureza de classe, o Governo PS de Sócrates, com a Lei 59/2008 e o RCTFP e o Governo PSD/CDS-PP, agravando ainda o memorando da troika, desenvolveram uma violenta ofensiva contra o trabalho: cortes de salários;aprofundamento da flexibilização do horário de trabalho com a introdução de novas variantes do banco de horas; aumento do horário de trabalho na administração pública, das 35 horas semanais para as 40 horas diminuindo o valor salarial; eliminação do descanso compensatório; diminuição do pagamento do acréscimo da retribuição por prestação de trabalho suplementar; eliminação de quatro dias feriado e a redução das férias; ataque à contratação colectiva; facilitação dos despedimentos; redução da protecção social no desemprego.

A imposição do aumento da duração do trabalho na Administração Pública é particularmente ilustrativo. Além da enorme desvalorização salarial, é hoje claro que aquilo que esteve subjacente a esta medida nunca foi a convergência entre os sectores público e privado, mas sim aumentar a exploração dos trabalhadores em favor do capital e procurar eludir as graves consequências sobre o funcionamento dos serviços resultantes das restrições à contratação e o despedimento de milhares de trabalhadores.

Entre 31 de Dezembro de 2011 e 31 de Dezembro de 2014 o número de trabalhadores da Administração Pública diminuiu em 71.365. Entre 2010 e 2015 o ganho médio liquido mensal real dos trabalhadores da Administração Pública diminuiu em 18,2%, mas o ganho médio liquido real hora (valor hora) dos mesmos trabalhadores reduziu-se em 28,4%.

Em 2015, os 655.000 trabalhadores da Administração Pública farão 150,6 milhões de horas de trabalho gratuito, o que corresponde a 1.603,8 milhões de euros que não receberão em resultado directo do aumento das 35 para as 40 horas semanais de trabalho.

É neste cenário de retrocesso económico e social que a Comissão Europeia desencadeou um novo processo de revisão da directiva sobre o tempo de trabalho.Entre algumas das questões que estão novamente em debate, incluem-se a exclusão individual, o “opt-out” e o “tempo de permanência”, o “on call time”.

Opt out (artigo 22º)

Este mecanismo traduz-se na possibilidade de, através de acordos individuais com os trabalhadores, muitas vezes celebrados aquando da sua admissão, se afastar o limite máximo da duração semanal de trabalho (na Directiva, 48 horas).

O mecanismo do “opt-out” individual é inaceitável, na medida em que este não é compatível com os princípios básicos de segurança e saúde no trabalho, com o princípio da conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar e com o direito ao repouso e aos lazeres.

É, portanto, inadmissível que a Comissão procure insistir em manter esta possibilidade, quando deveria determinar não só a eliminação dessa cláusula, como também, pela redução do limite máximo de duração do trabalho semanal para 40 horas e, progressivamente, para as 35 horas,aplicando já as 35 horas na Administração Pública.

Tempo de permanência / «on call time» (artigo 2º)

Esta pretensão consiste na contabilização de tempos de presença em certas actividades em que o trabalhador está na disponibilidade da entidade patronal como tempo de trabalho ou não trabalho e, posteriormente, como tempo de trabalho activo ou passivo.

Para a Frente Comum todo o tempo deverá continuar a ser reconhecido como tempo de trabalho,sem qualquer outra distinção, como pretende a Comissão, não havendo lugar à possibilidade de o contabilizar de forma diferente.

Aliás, os estudos que a própria Comissão anexa à proposta de revisão apontam no sentido da perigosidade do aumento do tempo de trabalho, recomendando, no máximo, 8 horas de trabalho:

«Com base em considerações de segurança, um período máximo de 8 horas de trabalho diário pode ser recomendado, uma vez que além deste número, os riscos de acidentes aumentam desproporcionadamente»2.
«O mínimo de 11 horas de descanso diárias parece, de facto, ser o mínimo exigível.Contudo, tempos de descanso mais prolongados seriam benéficos para a manutenção de uma segurança e saúde perfeitas».3
«Trabalhar em horas não usuais, i.e. o trabalho aos Sábados, Domingos, o trabalho nocturo e por turnos, aumenta os riscos para o equilíbrio na segurança, saúde e trabalho,especialmente quando combinados com longos horários de trabalho. Assim, tal deveria ser evitado o mais possível.»4
 


 
Neste sentido, a Frente Comum, manifestando, desde já, a sua total discordância com a proposta de revisão da Directiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Novembro de2003, exige:

a) A eliminação do “opt out individual”;
b) A fixação de limite do trabalho semanal em 40 horas, incluindo horas extraordinárias, mantendo a reivindicação da sua redução progressiva para as 35 horas em todos os sectores de actividade;
c) O reconhecimento do tempo de permanência como tempo de trabalho, incluindo as pausas, estabelecendo o tempo máximo de 2 horas de pausa para refeição;
d) A defesa dos interesses dos trabalhadores e de uma política que os respeite e valorize conforme os princípios e valores da Constituição da República Portuguesa(CRP) e as convenções internacionais a que Portugal e outros países da União Europeia estão vinculado obrigam, com destaque para as da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública


1 Assim, FERNANDO DE VICENTE PACHÉS/MARÍA JOSÉ MATEU CARUANA, «Crisis de empresa y tiempo de trabajo», e MARGARITA MIÑARRO YANINI, «Algunas notas sobre la incidência de la crisis económica en la ordenación del tiempo de trabajo en la unión europea)», in Crisis de empresa y derecho del trabajo – IV Jornadas universitarias valencianas de derecho del trabajo y de la seguridad social, coord. Juan López Gandía e Ángel Blasco Pellicer, Tirantlo Blanch, Valência. 2010, pp. 86 e 102, respectivamente.
2 Tradução livre. In Study to support an Impact Assessment on further action at European level regarding Directive 2003/88/EC and the evolution of working time organisation, Annex 1 – Study on health and safety aspects ofworking time, 21 December 2010, p. 38
3 Idem
4 Idem, p. 39

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